Fonte: O Dia
Em junho de 2019, Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, chefe do tráfico do Morro do Dendê, na Ilha do Governador, Zona Norte do Rio, e o miliciano Antônio Antônio Eugênio de Souza Freitas, o Batoré, morreram juntos, durante confronto com a polícia
A amizade entre os dois, que pertenciam a grupos criminosos distintos, surgiu após Guarabu e Batoré firmarem uma aliança, três anos antes. As táticas deixadas por Batoré para o tráfico na Ilha do Governador é o tema do quarto capítulo da série Narcomilícia do O DIA.
Uma das heranças é o preço tabulado do botijão de gás no bairro. A atividade foi ensinada por Batoré, segundo investigações, que repassava parte da renda para o tráfico e milícia. Ao que tudo indica, a prática continua, mesmo após a morte dos dois. Moradores de comunidades são proibidos de comprarem fora dos depósitos do tráfico.
Segundo o promotor Sauvei Lai, a união começou quando Batoré, integrante da milícia de Jacarepaguá, na Zona Oeste, se apresentou a Guarabu, para profissionalizar a exploração de pontos de vendas de gás e as vans de transporte na região.
Passado um ano e meio após a morte dos narcomilianos, a promotoria e a Polícia Civil investigando se os depósitos de venda de botijões de gás da Ilha do Governador ainda pagam taxas de segurança para os traficantes do Terceiro Comando Puro (TCP).
Ao que parece, a resposta é positiva. Em uma pesquisa de orçamento feita pela reportagem, em mais de 10 depósitos de gás nas regiões da Ilha do Governador, São Cristóvão, Madureira, Cascadura, Oswaldo Cruz, na Zona Norte, Gamboa, na Zona Central, e Muzema, na Zona Oeste, foi apurado que o botijão de gás na Ilha é um dos mais caros da cidade, custando R$ 85. A média de preço nos outros bairros é R$ 75.
“Achei que com a morte do Batoré poderia ter alguma desavença, um descontentamento por parte da milícia, fiquei surpreso que isso não aconteceu. Então, talvez, o tráfico da Ilha possa repassar ainda o pedágio para a milícia”, disse Lai.
Atualmente, Marcos Vinicius dos Santos, o Chapola, divide a a liderança do tráfico com Mário Henrique Paranhos de Oliveira, o Neves. Já as atividades de milícia seriam administradas por Marilene de Souza Freitas, irmã de Batoré.
Ilha do Governador teve uma das primeiras narcomilícias do Rio
As investigações do Ministério Público apontaram que os traficantes do Morro do Dendê, na Ilha do Governador, ligados ao Terceiro Comando Puro (TCP), foram um dos primeiros a começar a monopolizar o transporte alternativo e cobrar taxas dos motoristas de vans para permitir que eles circulassem pelo bairro. Fernandinho Guarabu e seu braço direito, Gilberto Coelho de Oliveira, o Gil, teriam se inspirado na milícia e iniciado as extorsões ainda em 2012.
“As nossas investigações mostram que o Guarabu e o Gil, em 2012, já exploravam o transporte alternativo. Isso foi constatado em diversos inquéritos policiais. Só que eles exploravam de uma forma muito rudimentar, diria até amadora”, analisou o promotor do MP, Sauvei Lai.
A profissionalização das táticas de extorsão na Ilha teria começado em 2016, quando milicianos de Jacarepaguá enviaram Batoré para a Ilha. O MP apurou que, inicialmente, os traficantes recusaram a proposta de profissionalização do serviço, mas que, por fim, o ex-policial militar conseguiu convencer Guarabu de que a parceria poderia ser um bom negócio.
“Batoré consegue convencer o Guarabu a se aliar com o simples argumento de que eles exploravam de forma arcaica, dizendo ‘olhas, nós temos experiência na exploração do transporte alternativo, sabemos organizar, controlar, extorquir, fiscalizar. Me dá uma chance e você vai ver que terá mais lucros, só vou tirar 10% para mim e dar todo restante para você, e você vai ver que vai ganhar mais dinheiro ainda’. O Guarabu, então, deixa acontecer esse experimento”, contou Sauvei.
Segundo o promotor, muito mais do que uma sociedade criminosa, Guarabu e Batoré se tornaram grandes amigos.
“O experimento dá tão certo que eles viraram amicíssimos. Quer dizer, o que era só uma terceirização, uma prestação de serviços, virou amizade pura. O Batoré foi preso, em 2017, e quando foi solto numa decisão judicial, deixou de morar no asfalto e passou a morar dentro do Dendê, sob abrigo do Fernandinho Guarabu. Eles morreram juntos. Isso não foi só uma parceria empresarial, foi uma amizade. O Batoré, inclusive, morreu indo para uma reunião do alto escalão, da cúpula do Terceiro Comando, no Complexo da Maré, junto com o Guarabu. Isso foi constatado numa interceptação telefônica. O Batoré era a grande ligação entre a milícia e o terceiro comando”, finalizou.
Moradores e comerciantes reféns
Representantes comerciais de distribuidoras de gás informaram que cada botijão custa, em média, R$ 55 para o depósito. Segundo fontes do setor, a criação de um monopólio faz o preço da mercadoria subir para os clientes, para que eles consigam vender em segurança e ainda ter seus lucros com o comércio.
“Nas zonas restritas todos são obrigados a comprar de provedores “nomeados” e “garantidos” pelo poder paralelo, logo, este fornecedor pode e, sistematicamente, cobra mais caro. O problema não é de suprimento, mas de segurança pública.
Quem sofre com isso também são os moradores, que acabam pagando mais caro que o preço de mercado. “Moro na Ilha e compro gás em Bonsucesso, onde pago R$ 65. Mas sei que quem mora nas comunidades não pode comprar fora do bairro. Aqui na Ilha os preços são todos iguais e todos os donos de depósitos se conhecem e não reduzem os preços”, disse uma moradora do Jardim Guanabara.